Respeito a nossa história

Por Anderson Davi

O Clube Náutico Marcílio Dias comemorou 102 anos nesta quarta-feira, dia 17, e eu comemoro, em 2021, 26 anos de Marcílio Dias. Lá por 1995, ainda com cinco anos de idade, comecei a saga ao lado do meu pai e do meu irmão de seguir o Marcílio Dias. Não de seguir nas redes sociais, como é tão fácil hoje em dia, mas nos estádios por aí mesmo.

No início, ia só aos jogos no Gigantão e fazia meu pai passar vergonha no Esquenta Galho. Acalorado com aquela paixão que nascia dentro de mim, soltava um repertório vasto de palavrões para uma criança. Ganhei notoriedade e me tornei quase um mascote da Rosita, que sempre vinha me dar a sua bênção. Logo a Rosita se tornou uma carona frequente nas viagens da família para ver os jogos do Marcílio também fora de Itajaí.

Ainda pequeno, passei a ir nas viagens mais perto. Lembro de ter ido ao clássico contra o Blumenau no antigo estádio Aderbal Ramos da Silva, em Blumenau, por exemplo, em meados dos anos 90. O velho Deba tremia antes de o BEC virar pó, junto com o próprio estádio. Ou de várias vezes ir ao antigo Ernestão para enfrentar o JEC. Hoje, no lugar das arquibancadas metálicas, sobraram ruínas do tradicional palco do futebol joinvilense.

Meu pai não economizava quilometragem. Esse fazia o itinerário de viagens do trabalho dele com a tabela do Campeonato Catarinense debaixo dos braços. Jogo em Criciúma numa quarta à noite, lá estava ele atendendo as redes supermercadistas do sul do estado. Ligava em casa antes do jogo e avisava: “escuta a rádio Difusora hoje que vou te mandar um abraço ao vivo”. Dito e feito: no intervalo do jogo seu Jânio mandava um alô no ar, direto da cabine do Heriberto Hülse.

Depois de alguns anos comecei a peregrinar por toda Santa Catarina atrás do Marinheiro, de Chapecó a Itaiópolis. E a coleção de histórias e experiências vividas nessas mais de duas décadas me fazem um torcedor orgulhoso e feliz por tudo aquilo que vivi. No Brasil, já fui de Ijuí ao Piauí com o Marcílio.

As vezes vejo torcedores marcilistas, em especial mais novos, tentando desmerecer a própria história, comprando o discurso de “rivais” de que o Marcílio “nunca ganhou nada”, como se os torcedores de outros times conhecessem alguma coisa dos 102 anos do velho Marinheiro. As conquistas estão espalhadas ao longo da história do clube, mas nem vem ao caso citá-las agora. A linha do tempo é longa e rende outro texto para breve.

Só quem viaja o estado a mais de 20 anos como eu, sabe como o Marcílio é respeitado por quem conhece de verdade a história do futebol catarinense. E até hoje, mesmo vivendo uma fase melhor em campo, os ditos “rivais” falam de quem na hora de comemorar seus feitos dentro das quatro linhas? de nós. O nome disso: respeito. Isso não se compra com dinheiro de patrocinador.

É claro que mais taças, mais volta-olímpicas, mais vitórias e ascensão nacional, seriam muito bem-vindas. Mas desconfio, com certa dor de cotovelo, que não teríamos essa paixão, intensidade e orgulho pelo Marinheiro do jeito que vivemos aqui em Itajaí e na região, se as coisas viessem como a gente sempre sonhou. Eu aprendi a me apaixonar pelo clube, não pelas conquistas. “É uma doença gostosa”, como diz a Rosita.

Quem diria que a Chapecoense, que no início dos anos 2000 “fundiu-se” ao Kindermann para não fechar as portas, que entrou pela janela do Catarinense de 2011 porque tinha sido rebaixada no campo no ano anterior, se tornaria a potência que é hoje? Assim como o Marinheiro, a Chape também é um clube de amplitude regional, mas hoje nutre certa superioridade no futebol estadual.

Eu não duvido que um dia o Marcílio esteja em outro patamar. Organização e gente com vontade para fazer, nós temos. O passado de más administrações ainda atrapalha, o presente é incerto, mas o futuro nos dá esperança. O que nos move é a paixão, que transformou o lema “Jamais Te Abandonar” em um mantra “invejado” por gente no estado e no Brasil inteiro.

“Como eles não desistem?”, devem pensar da gente. O futebol é feito de ciclos, mas para chegar aos 102 de atividade praticamente ininterruptos dentro de campo, é preciso ser muito grande. De geração para geração, a paixão pelo clube só cresce. Não vivemos de resultado, vivemos de Marcílio Dias.

As alegrias e memórias

Em meio às frustrações, não me faltaram alegrias com o Marcílio. A começar pelo gol de Bolé, aos 52 minutos do segundo tempo, na semifinal do turno da segunda divisão de 1999 contra o Timbó. Naquela altura do jogo, numa quarta à noite, a torcida marcilista estava representada por apenas duas pessoas no alambrado do campo do adversário: eu e meu pai. Bolé cobrou com perfeição, no ângulo, e no dia seguinte eu apareci na RBS, já que estava bem de frente pro lance do empate em 2 a 2. O final da história de 99 todo mundo já conhece.

Catarinense de 2000

Veio então 2000 e o Marcílio foi finalista do Catarinense da Série A. A campanha toda foi histórica. Eu estava lá no Gigantão lotado quando Biro-Biro cavou o pênalti e Lelo explodiu a arquibancada, empatando o jogo de ida da final contra o JEC em 2 a 2 no último lance do jogo. Um desconhecido me abraçou e me jogou pro alto várias vezes, de tanta felicidade.

Desse ano, a “melhor memória” vem da Ressacada. O Marcílio ganhava por 1 a 0 e Marcelinho Silva esperava na junção da linha do meio de campo com a da lateral para ser substituído. Na pressa para o Avaí buscar o empate, o juiz mandou o time da casa cobrar um escanteio antes da alteração. E adivinha quem estava sozinho, em condição legal, pronto para matar o jogo no contra-ataque? Marcelinho Silva recebeu o lançamento e foi até a meta de César Silva, sozinho, para fazer 2 a 0 e sacramentar uma vitória improvável na capital. Sem esses três pontos, não teríamos chego na semifinal.

Copa Sul-Minas 2001

Nos roubaram a vaga da Copa do Brasil de 2001, por força política da capital ou safadeza de certos dirigentes conhecidos pelas suas falcatruas, mas lembro de ter visto o Marcílio segurar o Atlético Paranaense na Copa Sul-Minas. A torcida rubro-negra, por quem nunca tive nenhuma simpatia, lotou o seu espaço e saiu frustrada do Gigantão. O time que seria o campão brasileiro daquele ano, jogando completo, não conseguiu vencer o Marinheiro, então figurante num grupo que tinha ainda o Atlético-MG.

Jogamos também o Brasileiro da Série B de 2000 e não havia rebaixamento, mas se fosse hoje, estaríamos fora do Z4 daquele campeonato. Em 2001 a CBF reorganizou o calendário nacional pós-Copa João Havelange, e o Marcílio iniciou uma sequência de participações na série C.

Copas estaduais

Na época, a vaga pra Copa do Brasil era privilégio do campeão e vice do estadual, então os torneios secundários da FCF eram para a distribuição de vagas no Brasileiro da terceira divisão. Ter calendário nacional era o grande objetivo da grande maioria dos times catarinenses no início dos anos 2000. Hoje essas taças tem o pomposo nome de “Copa Santa Catarina” e são disputadas por meia-dúzia de times, de divisões mistas e até por equipes sub-20.

Em 2005 o Marcílio ganhou uma dessas taças em Ibirama. Em um campeonato disputado por todos os times da elite estadual, com exceção de Figueira, Avaí e Criciúma, o Marinheiro chegou à decisão dessa fase passando pelo JEC dentro da Arena.

Na final, contra o timaço do Atlético de Ibirama, que acabara de ser vice-campeão catarinense, Leandro Branco acertou um pombo sem asa e Willian fez milagres com a camisa 1. Lá estávamos nós comemorando a classificação para o Brasileiro de 2005, que no fim das contas rendeu uma vaga no nacional também de 2006. Voltei pra Itajaí com a taça de vidro literalmente no meu colo, já que Seu Jânio era o diretor de futebol do Marcílio na época.

Se fosse hoje, aquela taça poderia ter valido uma vaga na Copa do Brasil com R$500 mil no bolso. Assim como a Copinha de 2007, vencida também pelo Marcílio, em um torneio organizado contra times alternativos de Figueira e Avaí, além de JEC e Chape. O mérito maior foi ter sido campeão invicto.

Recopa Sul-Brasileira 2007

No mesmo ano, teve ainda a Recopa Sul-Brasileiro, vencendo o Caxias em Curitiba. O torneio não levava a lugar nenhum, mas marcou um grupo de jogadores que merece destaque entre os esquadrões do Marinheiro, com uma bela goleada por 4 a 1 em cima dos gaúchos e Marcelo Vacaria brilhando.

Brasileiro Série C 2008

Essa era de alegrias da primeira década de 2000 teve o último ato em 2008. Na série C daquele ano o Marcílio foi até a terceira fase, com um time que fazia frente a qualquer adversário da divisão, na temporada mais forte que lembro de ter visto no Brasileiro. Pulei que nem doido na cozinha de casa, único lugar que a Rádio Clube pegava bem, com a virada por 2 a 1 contra o Caxias. A narração épica de Rubens Menon, com seu incomparável “Tááá láááá galeeeera”, até hoje arrepia.

Naquele ano a CBF definiu a criação da Série D em 2009 e com essa vitória diante do Caxias, em pleno Centenário, o Marcílio confirmou sua vaga entre os 20 clubes que continuariam na série C de 2009, quando a competição adotou essa quantidade de times pela primeira vez. Por esse motivo, o Marinheiro sequer disputou a Copa SC de 2008, já que a vaga do torneio estadual seria para a quarta divisão.

Virada no Avaí em 2014

De 2009 a 2016 o Marcílio teve péssimas gestões, altos e baixos, e ficou ameaçado até de WO na segunda divisão catarinense. Mesmo assim, a paixão do torcedor ainda ganhou alento em alguns momentos, como na virada por 3 a 2 contra o Avaí em 2014, após estar perdendo por 2 a 0 e ter um pênalti contra defendido por Rodolpho. Schwenck foi o nome da virada histórica no Gigantão.

Catarinense de 2019

Depois de tanta aflição, finalmente o Marcílio saiu das mãos das gestões que o afundaram para dar início a retomada em 2016. A reconstrução foi feita por torcedores, que assim como eu, cresceram vendo o Marcílio da arquibancada.

A vitória por 2 a 0 contra a Chape em 2019, no ano da volta à elite do futebol catarinense, é emblemática. Diante de quase sete mil pessoas no Gigantão, a explosão do segundo gol, já nos acréscimos, ecoou de Bombinhas a Barra Velha.

Brasileiro Série D 2020

Para fechar, com o clube já realinhado e tentando se recolar no cenário nacional, veio a “Batalha da Fonte Luminosa”, em 2020. Ao acaso do destino, fui o narrador dessa vitória histórica contra a Ferroviária e batizei aquela noite de domingo em Araraquara, no interior paulista, com esse nome.

No Dia do Marinheiro, com apenas 14 jogadores à disposição depois de um surto de covid-19, com o grande ídolo Gelson Silva à beira do campo como treinador “improvisado”, o Marcílio fez uma de suas grandes apresentações em muitos anos e venceu por 2 a 1, eliminando um dos grandes favoritos da série D desse ano. Definitivamente, tem coisas que só acontecem com o Marcílio.

A culpa é do futebol

Com as proibições de jogos em várias cidades do estado, o Campeonato Catarinense de futebol será mais uma vez paralisado. O futebol profissional durante a pandemia sempre foi questionado por parte da sociedade, por quem não acompanha e não sabe os protocolos que são seguidos pelos clubes, por quem sempre achou um “absurdo” acontecer uma partida de futebol enquanto o vírus se propagava e os leitos de UTI ficavam mais cheios dependendo da época do ano, mesmo após a ampliação de mais de 100% das vagas disponíveis.

Ao ver o anúncio de novas medidas de algumas prefeituras, entre elas a proibição dos jogos de futebol, em função do colapso do sistema saúde no estado, a maioria dos comentários está parabenizando a iniciativa. Oras, a culpa é do futebol, claro.

Porém, tem quem comente a favor em uma postagem sobre a paralisação do futebol (e tem todo direito de fazê-lo) e em outra postagem defenda a manifestação de donos de bares e restaurantes contra o lockdown aos finais de semana em SC. “As pessoas precisam trabalhar, a economia não pode parar, desse jeito vai gerar desemprego e fome”, eles dizem.

Eu tenho amigos donos de bares e restaurantes e sei que as dificuldades deles são enormes nessa pandemia, não estou aqui para julgar o segmento por lutar pela sua sobrevivência econômica. E muito menos por tentar manter os empregos. Tenho ainda mais amigos músicos que precisam dos bares abertos para tocar e sobreviver. Esses também estão sofrendo, e muito, vivendo à margem da sociedade julgadora das redes sociais.

Esse não é o ponto do texto e também não tenho conhecimento e formação suficientes pra dizer quais as medidas devem ser tomadas nesse momento para frear a propagação do vírus.

Voltando ao foco principal: sabe qual a diferença do jogador, de quem trabalha na comissão técnica, no administrativo, na cozinha, na manutenção, na loja, na comunicação de um clube de futebol médio/pequeno, para um garçom, um frentista de posto, um atendente de supermercado, um vendedor de roupas, ou qualquer outra profissão que você pode imaginar agora, nesse momento? NENHUMA. Todo mundo está no mesmo barco, remando para sobreviver em meio a uma pandemia de um ano.

Quem trabalha com futebol também é humano, também tem família, também “bota comida na mesa”. “Ah, mas o futebol não é serviço essencial”. Concordo 100%. Outras centenas de profissões também não são e estão funcionando normalmente. Os restaurantes e bares podem trabalhar com delivery, por exemplo, mas isso reduz muito o volume de vendas e também cortaria o emprego de quem faz o atendimento nas mesas. Na lógica de que o futebol não é essencial e tem que parar, essas pessoas também não são “essenciais”.

Quando se fala em Campeonato Catarinense, se fala em muito mais de mil empregos diretos. Mais de mil famílias que ajudam a movimentar a economia das cidades onde moram. Eu falo por mais de uma centena de colegas de imprensa que cobrem a competição também. Eles vivem do futebol, dos (poucos) patrocinadores que pagam pelo anúncio na cobertura esportiva, que só acontece, pasmem, quando tem jogo. Um jornalista esportivo também tem família, também “bota comida na mesa”, por incrível que pareça pra muita gente.

Não estou aqui para questionar ou criticar a proibição do futebol e outras atividades esportivas. No estado temos muitas equipes profissionais de vôlei, handebol, basquete, futsal, entre outras modalidades, que são mais afetadas pelas medidas restritivas que o próprio futebol profissional. Se é necessário parar a prática esportiva profissional em prol da saúde da população, não há o que contestar. O meu trabalho e de outras milhares de pessoas que estão no dia a dia do esporte, não é mais importante que a vida de alguém. Sou a favor do bom senso e da vida, sempre.

Porém, falando especificamente de Santa Catarina e do Marcílio Dias, algumas coisas precisam ser ditas. No dia 15 de março vai completar um ano que os clubes de futebol não colocam um torcedor dentro do estádio. Ao longo desse período, eles perderam 60% das suas receitas, fizeram cortes, mas mantiveram sua atividade principal, o “absurdo” futebol. O Marcílio Dias teve, ao longo desse período, um déficit de R$2 milhões, mas manteve mais de 60 empregos. Para finalizar o Catarinense sem mais dívidas, o clube precisa levantar mais R$300 mil em dois meses.

Os clubes de Santa Catarina estão falidos. Quebrados. Mas eles testam seus jogadores até duas vezes por semana, afastam os casos de covid, que felizmente, salvo raras exceções, não precisam de hospital para se recuperar e voltar aos campos após o isolamento. De fato, a saúde de um atleta profissional é de “ferro” e isso ajuda. Os clubes de futebol têm um médico acompanhando diariamente os profissionais. Eles cobram dos profissionais uma série de protocolos para evitar a contaminação pelo vírus. Mesmo assim surtos acontecem, porque a covid-19 é altamente infectuosa.

Que outro segmento ou empresa segue esse protocolo de testagem semanal, custeado por ela, para seus funcionários? Quantas empresas possuem um médico próprio acompanhando o dia a dia dos funcionários e afastando o mesmo ao primeiro sinal de sintomas?

Repetindo: os clubes não colocam um torcedor sequer nas suas arquibancadas há um ano. Não venderam um ingresso sequer em um ano, mas precisam da bola rolando para ter o mínimo de receita com patrocinadores, planos de sócio, vendas de cota de TV e streaming, e vendas de produtos oficiais. Sem jogo, não há receita alguma. Não há empregos.

Aqui perto, a 30 quilômetros de Itajaí, um parque temático enche uma arquibancada de gente aos finais de semana. Ao longo de 2020 e na temporada de verão. Independente dos protocolos seguidos no parque, os clubes sequer tiveram a opção de botar um torcedor nas suas arquibancadas, com qualquer que fosse o protocolo.

Qual arquibancada “ajudou” a propagar mais o vírus? A cheia ou a vazia? A analogia com o parque temático se deve pelo fato de lá haver uma arquibancada igual a de um estádio de futebol. Mas você pode trocar a arquibancada do parque por qualquer outro local que esteve cheio nesse último ano. Ou até mesmo comércios de ambiente fechado, não necessariamente lotados na mesma hora, mas com grande rotatividade de pessoas por dia. Ou então por aeroportos e aviões. Ou pelos ônibus de transporte público lotados diariamente.

“Ah, mas as pessoas precisam trabalhar, precisam do emprego, do transporte público”. Sim, as pessoas precisam e não as julgo por isso. Quem trabalha com futebol também precisa. O primeiro a parar sua atividade novamente será o futebol e os esportes coletivos. “Ótimo, é isso aí mesmo, é um absurdo ter futebol no meio da pandemia”, estão comentando. Será que alguém realmente acha que a culpa é do futebol ou só está preocupado que a próxima atividade a parar não seja a sua?